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Consequência da militarização da Segurança Pública no adoecimento mental dos policiais

Artigos

Por Isabella Schmidt Gervasoni.

Grande parte da nossa população acredita que o serviço policial não atende às suas necessidades, ou melhor, que é desatualizado e precário. Em parte não podemos discordar. Porém, as necessidades que não estão sendo atendidas vão além do serviço público propriamente dito.

De acordo com a revista Carta Capital, o suicídio de policiais é mais alto que o índice daqueles que morrem em serviço. Em 2019, 65 policiais militares e 26 civis cometeram suicídio. Nesse mesmo ano o número de PMs mortos em serviço foi de 56 e o de policiais civis 16.

A mesma reportagem noticiou o ocorrido em Salvador, ocasião em que um policial militar gritava “venham testemunhar a honra ou desonra do policial militar da Bahia” e atirava para o alto.

“O convívio permanente com a morte e a violência, as extenuantes jornadas de trabalho, a falta de sono, lazer e convívio com a família são fatores de risco para os policiais. Estão diretamente relacionados com o trabalho policial e, portanto, podem levar os profissionais a quadros de adoecimento físico e mental. No entanto, as organizações policiais individualizam os problemas, atribuindo ao indivíduo a responsabilidade por seu adoecimento ou violência auto infligida, como no caso dos suicídios’’, foi a crítica da notícia.

Percebemos, então, haver um problema sistêmico em relação à saúde mental dos policiais em atividade no Brasil, mas antes de adentrar ao mérito e às soluções, temos que entender o que é a polícia e o que é a segurança pública.

Quem é responsável pela Segurança Pública? A segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservação da ordem pública das pessoas e do patrimônio. É uma sequência contínua de fatos ou operações que apresentam certo comportamento ou que se reproduzem com certa regularidade, que tenham como objetivo o foco em componentes preventivos, repressivos, judiciais, saúde e sociais.

No Brasil os seguintes órgãos fazem parte da segurança pública:

• Polícia federal;
• Polícia rodoviária federal;
• Polícia ferroviária federal;
• Polícias civis;
• Polícias militares e corpos de bombeiros militares.

O modelo de polícia no Brasil é baseado no modelo de polícia francês. A Gendarmeire, corporação militar francesa, encarregada de manter a ordem e a segurança pública, é uma força militar pura e desempenha de maneira geral as funções da polícia. Apesar de não ser o seu objetivo principal, a Gendarmerie também tem missões policiais militares, na manutenção da disciplina das tropas mobilizadas, como atuam as polícias das forças armadas no Brasil (como exemplo a Polícia do Exército), seja em território francês ou em operações no exterior.

Suas funções principais são: manutenção da ordem, segurança geral, missões de patrulhamento, treinamento, reforço da defesa etc.

Os processos responsáveis pela militarização da polícia no Brasil, e que estruturam a segurança pública, surgiram da resposta a momentos em que o país passava por tensões sociais, manifestações populares e grande organização dos trabalhadores, tais como a manifestação dos trabalhadores em 1917 e a ditadura militar em 1964. Ou seja, o processo teve origem em momentos de ameaça aos interesses de uma elite amedrontada e também das vontades do Estado.

Mesmo com a redemocratização esse aparato repressivo não foi desfeito. A Constituição de 1988, apesar das diversas mudanças positivas, não alterou a organização estrutural dos órgãos da segurança pública, mantendo a mesma disposição das polícias, que continuou como força auxiliar do Exército, assim como no modelo francês.

Podemos perceber a representação da militarização na polícia até mesmo na cultura popular, a exemplo do filme Tropa de Elite, do diretor José Padilha. As intervenções no filme geralmente ocorrem com a presença da violência e o desrespeito aos direitos humanos e direitos constitucionais, tanto dos policiais quanto da população. As intervenções são baseadas em preceitos de guerra, polícia contra cidadão. E não só isso, os personagens são vistos como salvadores da pátria, quando, na verdade, o objetivo primordial do filme é justamente fazer crítica ao nosso sistema.

Os direitos constitucionais do policial e do cidadão são feridos. Tratamentos vexatórios e humilhantes para ambos os lados. O treinamento de guerra faz crescer o número de resistências e também o número de policiais mortos em confronto, pois, o preparo é para a guerra. O militarismo faz com que o policial enxergue a sociedade como seu inimigo.

O debate sobre a polícia e segurança pública está em alta pelo crescimento das taxas de criminalidade, o aumento da sensação de insegurança e a aparente ineficácia da ação policial da prevenção da violência criminal, que foram intensificados pelo desemprego proveniente da pandemia. Porém, a maneira que os policiais lidam com o conflito, além da parte histórica citada nos parágrafos anteriores, é resultado direto da maneira que lidamos com a saúde mental e física dos mesmos.

A profissão por si só traz aos policiais algumas mudanças no seu estado emocional, por ser uma instituição que preza pela ordem e respeito, com um treinamento rígido e desatualizado aos ingressantes, uma exigência ao cumprimento de regras, constantes tensões e perigos.

A militarização da polícia com base no modelo francês dificulta que nossos policiais peçam ajuda, fenômeno conhecido como complexo de herói. Você sabe o que é?

Para a psicologia, o complexo de herói se caracteriza pela excessiva autossuficiência, determinação, exigência e rapidez de ação de alguns indivíduos ao realizar qualquer atividade.

No caso dos policiais, o complexo de herói se manifesta também como o sentimento que os policiais têm de que a saúde deles, o bem estar, os salários baixos, a depressão e a falta de assistência psicológica não são um problema, já que eles são os ”heróis” da sociedade.

Um exemplo claro de um episódio que se enquadra no conceito de complexo de herói foi quando a PM do Rio de Janeiro postou no Twitter uma foto com policiais segurando armas e comemorando a morte de 5 suspeitos e a apreensão de armas no complexo do Alemão. “Estes são nossos guerreiros, nossos heróis! Foram eles, que neste domingo (15/07), no Complexo do Alemão, retiraram das mãos de criminosos, da mais alta periculosidade, dois #Fuzis de guerra, duas pistolas e uma granada. Somente nessa ação, quantas vidas eles ajudaram a salvar?’’, escreveram eles.

O psicológico do policial não é levado em conta. Tal descaso pode causar um desequilíbrio na saúde mental desses profissionais pois são condicionados a manter um comportamento resistente a pressões físicas, psicológicas e sociais.

O senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da Comissão de Segurança Pública do Senado (CSP), avaliou que a pressão colocada sobre os profissionais de segurança nas cidades é a principal causa de desestabilização mental dentro das corporações: “O policial civil ou militar não é uma máquina. Ele não é um equipamento que funciona se você apertar o botão. Ele é um ser humano que, com o passar do tempo dentro da polícia, vendo tantas dificuldades e tantas arbitrariedades que são cometidas contra a população mais carente, vai perdendo a sensibilidade”.

A falta da assistência psicológica no treinamento, durante o trabalho e após, geram resultados: falta de preparo, apatia, medo, ansiedade, depressão, respostas desproporcionais às tarefas do emprego etc, prejudicando não só os policiais, mas todos na sociedade.

A polícia brasileira é uma polícia que, sobretudo, foi treinada para a guerra, treinada para servir a conflitos armados. O país que tem o maior número de policiais assassinados por ano é um reflexo direto da guerra ao crime que estabelecemos baseado no modelo francês de militarização da polícia.

De acordo com o Cel. Marlon Jorge Teza, da Polícia Militar de Santa Catarina: “há um desafio não apenas no Brasil, mas em diversos países, de reduzir ‘práticas excessivamente militarizadas’ das corporações policiais”. Para ele, isso tem relação com uma cultura que vincula o policial a um guerreiro em combate.

A redução de práticas excessivamente militarizadas mostra-se muito desafiadora justamente pela postura que o policial deve manter, já que sua função, reforçada pela sociedade, é a de estar sempre alerta e atento a qualquer incidente e a qualquer ameaça iminente.

Segundo a Diretora de Programas do Instituto Igarapé, Melina Risso, a atividade policial é essencial para a sociedade democrática de direito, com funções como a proteção da sociedade e o cumprimento das leis (como estabelecido pelo modelo francês de policiamento). Mas além de pensar maneiras, devemos começar a construir uma nova forma de policiamento que respeite o policial e sua a saúde psicológica e física.

O Estado também precisa respeitar a vida do agente policial e suas limitações, consequentemente criando políticas públicas que forneçam assistência psicológica e a desmistificação do heroísmo para aqueles que têm um papel tão decisivo na sociedade.

De acordo com Senador Alessandro Vieira, a exposição contínua à violência pode tornar o indivíduo mais vulnerável a doenças psíquicas, à dependência química e às doenças psicossomáticas: “No entanto, por questões culturais e institucionais, esses profissionais quase nunca conseguem auxílio dentro de suas corporações, onde enfermidades psiquiátricas, tais como depressão e ansiedade, muitas vezes são vistas como sinais de fraqueza ou de falta de comprometimento profissional”.

Com o complexo do herói tão presente em nossos policiais, como ele irá procurar apoio para a saúde mental? E o medo de passar aos outros policiais uma ‘’fraqueza’’ ao pedir esse apoio?

São 3 níveis para a prevenção:

• O primeiro com os policiais fazendo ações de conscientização sobre a saúde mental;
• O segundo é oferecer um olhar mais atento para os policiais que já demonstraram algum sinal de alerta para a saúde psicológica;
• O terceiro é de atenção aos policiais que já tentaram suicídio e buscar alternativas: suspender a posse de arma de fogo, instruções e fornecimento de apoio pelas instituições para os familiares.

“Precisamos que essas instituições tenham uma estrutura consolidada de saúde mental internamente. Temos muitos desafios para enfrentar, tanto no sentido de sensibilizar a tropa e os comandantes, mas também no sentido das próprias polícias terem um serviço estruturado e cultura de dados que lhes permita conhecer melhor esse fenômeno no seu interior institucional”, recomenda Fernanda Cruz, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e do Grupo de Estudos de Pesquisa em Suicídio e Prevenção (Gepesp) para o Jornal da USP.

De acordo com a Agencia Senado, o Plenário do Senado aprovou projeto de lei que inclui ações voltadas para a promoção da saúde mental e prevenção ao suicídio no Programa Pró-Vida, voltado para profissionais de segurança pública. O Projeto de Lei nº. 4.815/2019, do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), foi aprovado com votação unânime e segue para a análise da Câmara dos Deputados. Também determina que o Pró-Vida publique anualmente dados sobre transtornos mentais e suicídio entre profissionais de segurança. O programa passará a oferecer acompanhamento a familiares.

O policial que teve seus direitos lesados pode recorrer à Justiça para reparar o dano, afinal, o art. 927 do Código Civil dispõe que “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

É policial ou conhece um policial que já teve seus direitos em relação à saúde mental lesados? Entre em contato com o escritório Candanedo Advocacia para ajuda e mais informações.

Referências:


SILVA, Liliane Neris; SEHNEM, Scheila Beatriz. Avaliação da saúde mental dos policiais militares. [https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/pp_%20ae/article/download/19184/10469] Acesso em 16 de agosto de 2021.


FERREIRA, Roberto Cesar Medeiros; REIS Thiago de Souza. O Sistema Francês de Polícia e a sua relação com a Segurança Pública no Brasil. [http://www.encontro2012.rj.anpuh.org/resources/anais/15/1338408842_ARQUIVO_OSistemaFrancesdePoliciaeasuarelacaocomaSegurancaPublicanoBrasil.pdf] Acessado em 16 de agosto de 2021.


[https://ippesbrasil.com.br/noticias/boletim-ippes-2020-um-panorama-do-suicidio-policial-no-brasil/] Acessado em 16 de agosto de 2021.


[https://jornal.usp.br/atualidades/prevencao-e-passo-importante-para-garantir-saude-mental-dos-policiais/] Acessado em 16 de agosto de 2021.


[https://www.cartacapital.com.br/sociedade/suicidio-de-policiais-e-um-problema-grave-no-brasil-aponta-estudo/] Acessado em 16 de agosto de 2021.


[https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/fim-pm-propostas-desmilitarizacao-policias/#:~:text=Enquanto%20alguns%20defendem%20que%20a,acabar%20com%20a%20viol%C3%AAncia%20de] Acessado em 16 de agosto de 2021.


[https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/04/06/promocao-de-saude-mental-entre-policiais-e-a-aprovada-pelo-senado] Acessado em 16 de agosto de 2021.
[https://gestaodesegurancaprivada.com.br/seguranca-publica-no-brasil-estrutura/] Acessado em 17 de agosto de 2021.


[https://jus.com.br/artigos/52518/o-militarismo-nas-instituicoes-policiais-e-a-crise-da-seguranca-publica-brasileira] Acessado em 17 de agosto de 2021.
[https://www.justificando.com/2017/04/17/militarizacao-uma-historia-do-estado-contra-o-povo/] Acessado em 17 de agosto de 2021.


[https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/07/15/cinco-pessoas-morrem-em-confronto-com-pm-no-rio-corporacao-chama-policiais-de-herois.htm] Acessado em 17 de agosto de 2021.

 

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